segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Apenas uma Recompensa

Ajoelhada de frente para a porta, já havia analisado a maçaneta cinco vezes - nada de errado. Entretanto, o corpo decomposto e fétido o ao meu lado me dava um bom motivo para acreditar que havia alguma coisa na porta – mas, com certeza, não era a maçaneta. Resolvi investigar a fechadura. Examinei um pouco e percebi que havia algo de incomum nela. Abri minha mochila, peguei minha lupa e olhei mais de perto: havia um mecanismo por dentro. Minúsculo. Impossível desarmar, de tão minucioso, porém, possível evitar. Guardei a lupa, fiquei de pé e botei a mochila nos ombros. Com cuidado, segurando a maçaneta por cima, girei e deixei a agulha envenenada voar à vontade, longe de mim.

Abri a porta.

Um corredor vazio. Apostei, pelo menos, mais duas armadilhas nele. Um passo cuidadoso, nem mais e nem menos, e pus-me a observar a nova área. O teto era dividido em blocos de pedras, todos colados uns aos outros. Pareciam firmes – se fosse para algum desabar na minha cabeça, haveria algum distanciamento singular em alguma parte. Olhei para o chão de azulejo e fiquei desconfiada. Chãos de pedra são firmes e estáveis. Azulejo é mais sensível, perfeito para se quebrar ou para ativar gatilhos. Se a armadilha não estivesse no chão, seria ativado por ele. Olhei para as paredes de tijolos alaranjados. Óbvio o suficiente para até um guerreiro burro perceber: havia pequenos relevos circulares por todos os lados. Grandes demais para dardos, pequenos demais para flechas. Provavelmente virotes. Não seriam fortes o suficiente para matar alguém, mas fariam bons machucados. Por sorte minha e burrice de quem projetou aquela sala, não haviam compartimentos para virotes da altura dos meus joelhos para baixo. Simplesmente me deitei no chão e fui me arrastando. Meu corpo ativou a armadilha e eu pude ouvir o sopro fino passando acima de mim. Rastejei com cuidado, colada no solo e evitei toda e qualquer ameaça, nem um fio de cabelo meu foi arrancado pelos virotes. Após cerca de cinco metros, olhei ao meu redor, vi que nada mais me ameaçava e fiquei de pé. Estava de frente para a porta.

Analisei a maçaneta uma vez. Duas. Três. Quatro e cinco vezes, e nada. Peguei a lupa, olhei a fechadura por alguns segundos, alguns minutos, algumas dezenas de minutos, uma hora, e nada. Parecia limpo. Girei a maçaneta, ouvi um estalo abafado vindo do teto e, instintivamente, pulei para trás.

Um impacto grave e pesado na posição onde eu estava. Por menos de um segundo, uma coluna de concreto não me esmagou contra o solo. Respirei fundo, recuperando o fôlego, enquanto entendia, aos poucos, o que acabara de acontecer. Quase perdi a vida por burrice! Burra, burra, burra! Lembre-se: sempre olhar paredes e tetos antes de abrir uma porta. Não vou esquecer!

Logo, o bloco voltou a se erguer e se camuflar de teto novamente. Ajoelhei-me de frente para a maçaneta, analisei com o triplo da atenção de antes, encontrei o mecanismo, usei duas agulhas finas como fios de cabelo, mas rígidas como metal e desativei a armadilha. Me xinguei mais uma vez antes de continuar.

Atravessei a porta e encontrei outro corredor, dessa vez, com um baú no fundo. Procurei compartimentos que poderiam se abrir e lançar flechas ou balançar lâminas, mas nenhuma pista. Teto limpo. Paredes limpas. Chão suspeitoso. Empunhei minha espada curta e cutuquei o solo. Espetei num canto, forcei a ponta contra outro e, na terceira tentativa, perfurei o chão, que se desfez à minha frente, revelando um poço com espinhos. Uma queda de mais de dois metros de altura seguida por perfurações por todos os membros disponíveis - parecia uma morte saborosa. Eu estava separada do outro lado do corredor por cerca de três metros. Analisei as paredes do poço: pareciam realmente de pedra maciça por todos os lados, o que me indicava não haver nenhuma outra armadilha depois daquela. Satisfeita, peguei impulso e saltei até o outro lado do corredor.

Estudei o restante do corredor e nada parecia me ameaçar. Caminhei, cautelosa, até o baú. Ajoelhei-me. Logo pude perceber que ele estava grudado ao chão, ou seja, estava conectado a algo na sala. Olhei as dobradiças da tampa e pareciam mundanas. Olhei a fechadura e nada demais também. Peguei minha lupa e pus-me a estudar com mais precisão. Depois de alguns minutos analisando, pude ver que o mesmo dispositivo que destrancaria o baú, ativaria uma armadilha – o que, finalmente, parecia ser desafiador. Peguei minhas agulhas e comecei o trabalho de verdade. Cutuquei o fundo da fechadura, tentei girá-la por dentro e vi que o mecanismo acompanhou-a, ameaçando se ativar. Cutuquei o dispositivo e conclui que seria impossível destrancar o baú sem acioná-lo junto. Enxuguei o suor de minhas mãos para não perder a precisão e voltei para a fechadura. Ao redor do mecanismo, nada de diferente. Verifiquei o fundo da fechadura, procurando por algum mistério, mas não havia nada. Procurei algo a mais, alguma pista para desarmar a armadilha, mas ela era simplesmente perfeita, impossível de separá-la da fechadura. Foquei toda a minha mente naquele espaço mínimo, cessei a respiração e fixei meus olhos. Peguei minha lupa novamente e procurei por algo, mas nada. Olhei a fechadura por fora, olhei ao redor do baú, mas tudo era completamente estéril. Voltei para a fechadura, guardei a lupa, peguei as agulhas e fiquei imóvel por um tempo que não pude calcular até que uma possibilidade se fez berrar em meu cérebro. Passei uma agulha por dentro da fechadura, entre os mecanismos e pude sentir um mínimo relevo. Suavemente, tentei introduzir sua ponta dentro do fecho, mas escapuliu. Respirei mais uma vez, pisquei para deixar meu cérebro se ordenar e tentei de novo. Consegui enfiar a agulha, criando um pequeno vão, não mais do que um centímetro. Encaixei a outra agulha com cuidado no outro lado do fecho e empurrei de leve. Abrindo caminho aos poucos, introduzindo uma agulha e empurrando o dispositivo com a outra, um centímetro de cada vez, fui separando a armadilha da fechadura. Quando senti uma boa distância de três centímetros, encontrei elos dentro da mínima fenda aberta. Um por um, com a paciência de uma felina, desconectei os elos do interior da fechadura, até que todos estivessem inutilizados e, finalmente, destranquei o baú.

Confesso que só respirei alguns instantes depois de ouvir o estalo da fechadura, quando tive certeza de que ainda estava viva. O curioso de se focar unicamente em um objeto é que você abre mão da maior parte dos seus sentidos para aguçar unicamente o que é fundamental para aquela tarefa. Depois de concluída, os sentidos foram voltando aos poucos, latentes, como quando o sangue volta a correr pelas veias depois de uma câimbra ou voltamos a pensar melhor após uma dor de cabeça. Com o retorno do tato, senti-me encharcada de suor. Com o retorno da audição, ouvi minha respiração e meus batimentos cardíacos acelerados. Com o retorno do paladar, senti minha boca seca, tentando produzir saliva. Com o retorno do faro, senti o cheiro de velhice daquela sala que eu havia ignorado até então. Com a visão voltando a se ampliar, após tanto foco, voltei a enxergar o teto amarelo e o baú rubro.

Finalmente, com minha percepção de volta ao normal, abri o baú e coletei o tesouro que era meu por direito.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Esperando e Sangrando

Era um bar qualquer numa estrada qualquer. Mal frequentado, obviamente. Um ou outro drogado metido a roqueiro dos anos 80 com uma moto de segunda mão, um ou outro criminoso de delitos suaves, uma ou outra prostituta que acabou de perder seu antigo ponto de programa e acabou aqui por azar e tipos do mesmo nível. E eu, que estava no grupo do um ou outro que não tinha onde cair morto. Depois de alguns meses, concluí que o bar não possuía frequentadores assíduos, todos eram passageiros. Fazia um frio agudo naquela noite e qualquer inocente que abrisse a porta me irritava profundamente. O homem que fazia vez de barman, garçom, caixa – e, provavelmente, proprietário – era um coxo que andava mancando de um lado para o outro vestindo um avental sujo, portando uma expressão carrancuda, uma cabeça careca e lisa e a bandeja ridiculamente erguida na mão direita, parecendo simular um funcionário de restaurante de madame. Tudo estava como deveria estar: tatuagens e sorrisos acavalados pelos cantos, música ruim no ambiente, o garçom desfilando seus passos mancos e desengonçados oferecendo qualquer porcaria para os clientes e eu no meu canto, invisível para todos.

Até que ele entrou pela porta. Primeiro, praguejei para mim mesmo ao sentir o frio. Em seguida, engoli minhas palavras e até cogitei rezar quando o reconheci.

Ele entrou vestindo uma calça jeans surrada e um casaco de lã encardido com capuz. Caminhou até quase o centro do bar e estagnou. Ficou completamente imóvel por alguns instantes, sem parecer nem respirar. Então, seus dedos tremeram por entre os fiapos da manga. Depois, o ombro direito fez um espasmo como se fosse uma câimbra. Em seguida, contraiu o estômago e curvou a coluna como quem tem uma ânsia de vômito e se apoiou numa mesa para não cair no chão. Um dos drogados achou graça e se pôs a rir e comentar abertamente com os outros enquanto o assistia se contorcer. A mão agarrada a mesa tremeu e a sacudiu numa vibração irregular e seus dentes amarelos se exibiram numa nítida expressão de dor. As lâmpadas do recinto piscaram, mas, ninguém deu bola. Um dos joelhos foi ao chão e um grunhido grave rangeu pelo bar. O rádio que tocava música ruim começou a chiar doentiamente, mas, os comentários e risadas abafaram os ruídos. Uma das prostituas pareceu sinceramente se apiedar e foi até ele, oferecendo-lhe ajuda. Pobre coitada.

Ele agarrou a mão da moça – que até era mais bonita que as demais – e a segurou com firmeza. Seu rosto se levantou por dentro do capuz e ele a encarou nos olhos. Ela, naturalmente, paralisou de susto e se deixou levar pelo olhar do maldito. Quando ela abriu a boca para emitir qualquer som, as lâmpadas piscaram mais uma vez e lentamente se apagaram, deixando tudo em penumbra. Porém, a escuridão foi além do breu natural. A escuridão se manifestou pelo bar como uma neblina que se espalha em cidades de grande altitude e impregnou a minha visão – e a de todos, acredito - com um negro vazio como o vácuo e o som do rádio se extinguiu deixando apenas os murmúrios de dúvida e de apreensão como som ambiente - até o drogado já não estava achando graça de mais nada. Aos poucos, o corpo e a mente foram se adaptando à realidade negra e algumas formas como mesas, cadeiras e pilastras foram se revelando. Ele e a prostituta ainda estavam no mesmo lugar, na mesma posição. Franzi meus olhos tentando entender a cena e vi o corpo da moça amolecer, bruxulear e tombar para trás. Sua queda provocou um impacto oco no piso de madeira e seu crânio pareceu reverberar com intensidade no chão. Olhei bem para o rosto da menina e juro que, apesar da escuridão, ela parecia completamente cinza e mórbida. Também juro que vi uma lágrima. Uma única lágrima escorrendo de um dos olhos e ouvi o suave eco da gota pingar no chão. Foi quando o caos começou.

Primeiro, um risinho agudo e feroz vindo dos cantos. Então, repentinamente, uma mão ossuda de dedos longos agarrou a cabeça do drogado e a girou, levando seu queixo até suas costas num estalo indigesto. E gritos. Gritos desordenados e desesperados de pessoas e gritos estridentes e vorazes de coisas. Os outros drogados se levantaram e correram em direção à porta. O primeiro foi interceptado por uma criaturinha magra e esguia, provavelmente do mesmo tipo da que assassinara seu amigo, que se jogou em suas costas e agarrou, arranhou, dilacerou e desfiou tudo que as garras encontraram sem nenhum alvo específico. Arrancou tufos de cabelo, pedaços da jaqueta, um bom bocado de carne e sangue dos ombros, até que um olho foi penetrado e um corte profundo na garganta foi feito e ele caiu no chão, enquanto o corpo desfalecido continuava a ser rasgado como um boneco de pano que sangra. O outro pensou que conseguiria alcançar a porta, mas teve sua perna subitamente puxada por algo que veio por de baixo de uma mesa. Seu rosto colidiu violentamente no solo e ele perdeu algum tempo recuperando a visão após o impacto. Quando voltou a enxergar, só conseguiu berrar. Alguma coisas se rastejou até ele, alguma aberração. Um ser com corpo volumoso e rugoso com braços finos e compridos, sem pernas e nem olhos rastejou até a perna do drogado e a puxou com uma força inesperada para debaixo da mesa. O drogado, por reflexo, tentou se segurar pelas tábuas do chão e pelos pés das cadeiras ao redor, mas não conseguiu se fixar em nada. Seus gritos aumentaram a cada puxada da aberração. Mais uma puxada e mais um berro. Então, quando ambos já não estavam mais no meu campo de visão, sons de carne se abrindo, tendões sendo arrebentados e os últimos berros da vítima ecoaram pelo recinto.

A única prostituta que havia sobrado demorou mais para reagir. Sua primeira ação foi tampar os ouvidos, comprimir os olhos e gritar histericamente. Quando cansou de não fazer nada enquanto o bar morria, se pôs a correr. Deu três passos, tropeçou no corpo da amiga e foi ao chão. Balbuciou idiotamente desculpas para a outra prostituta que jazia ao seu lado e começou a se levantar com dificuldades graças ao salto-agulha. Os joelhos ralados, a maquiagem completamente desfeita e borrada e a boca tremendo e contraindo em gemidos agoniados. Mal havia se posto de pé e arregalou os olhos: sua amiga também se levantara. O cabelo que fora loiro cobria seu rosto quase por completo. A postura que fora esbelta estava curvada. A mão direita que fora delicada portava uma navalha que eu duvido que estivesse lá desde o princípio. Cinza. Pele completamente cinza. A prostituta gritou e a outra respondeu com a navalha encravada no intestino e forçada para cima até a boca do estômago. Vermelho e cinza se misturaram enquanto a jovem emudecia e tombava.

O coxo foi a visão mais triste da noite. Eu não sei onde ele esteve durante toda a confusão, mas, não deve ter ido muito longe. Provavelmente foi o primeiro a se por a correr sem que ninguém se importasse com ele. Mas, agora, sobravam poucas vítimas e ele se tornou uma evidente. Estava coxeando nos seus passos mancos e desengonçados pelo bar mantendo a ridícula bandeja erguida acima de sua cabeça - acredito que ele simplesmente esquecera dela de tão habituado que estava em carregá-la. Ele mancou até onde a lagrima havia escorrido e teve seu pequeno pé deformado preso a algo. Vi seu corpo afundar para a direita e o vi fazendo força para sair do lugar inutilmente. Vi a bandeja finalmente sendo arremessada para longe e suas mãos gorduchas agarrando a coxa e a puxando, tentando tirar o pé de onde estava. Vi a criaturinha esguia, a aberração sem pernas e a prostituta incolor cercando o pobre coitado. Fechei os olhos e não vi mais nada - mas ouvi muita coisa.

Esperei pela minha morte de olhos fechados, sem emitir nenhum som. Esperei pela morte que não veio. Abri os olhos e o caos continuava. Um punhado de vítimas resistentes tentavam salvar suas vidas e tinham seus corpos desfigurados e dilacerados pelos pesadelos que festejavam no recinto. Vi um braço se apoiando no balcão e o vi se erguendo com dificuldades. Ele se esforçou para sentar numa cadeira e repousar o rosto numa das mãos. Esfregou sua barba rala e respirou fundo.

Parecia aliviado.

Enquanto as pessoas eram brutalizadas e os gritos ecoavam, ele respirava aliviado, como alguém que se vê livre de uma enxaqueca violenta. Seus ombros ondulavam, sua boca pendia entreaberta e seus olhos miravam algum ponto aleatório. Como quem descansa após muita agonia. Como quem encontra paz por um breve momento.

Então, os pesadelos começaram a retornar para onde vieram. As aberrações sem pernas rastejaram como vermes para debaixo das mesas e das cadeiras, as criaturas esguias saltaram de um ponto para outro, até se jogarem num canto consumido pelo breu e silenciarem suas risadas grotescas e a prostituta incolor caminhou até o meio do bar e simplesmente se deitou no chão. Minha visão voltou a enegrecer e mais uma vez fui desprovido de enxergar a menor silhueta ao meu redor. Então, ouvi os lamentos.

- Não! Ainda não! Foi muito rápido dessa vez! Por favor, ainda não!

E, aos poucos, minha visão voltou.

O bar estava uma lambança de sangue. Corpos abertos, manchas rubras pelas paredes e pelo chão, cadeiras e mesas despedaçadas, tudo em contraste a uma balada country do rádio que voltara a funcionar. E ele. Sempre ele. O homem maltrapilho que perambulava pelos meus pesadelos. A pessoa que melhor me conhecia nessa vida. Seu rosto estava novamente recoberto pelo capuz e ele estava novamente recoberto de silêncio. Ele se levantou, deu meia volta e saiu pela mesma porta que entrou.

E eu o segui.

Não sei por quê, mas, eu o segui.

Eu tive que seguir...

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Lâmina Vermelha

Pulei para minha esquerda enquanto a lâmina afundou o chão com o seu peso. Mal tive tempo de firmar os pés no solo e me agachei para desviar do novo golpe que teria me partido ao meio. Tentei uma estocada, mas o imenso corpo girou para o lado e, por puro instinto, me joguei rolando no chão, sentindo o assobio da lâmina passando pelo ar enquanto escapava de mais um golpe mortal. Eu simplesmente não podia receber nenhum golpe de uma lâmina daquele tamanho - ela facilmente partiria meus ossos e abriria meus órgãos caso me acertasse.

Difícil de acreditar que meu adversário realmente era um humano. Seu corpo de mais de dois metros de altura era recoberto por uma armadura de placas completa, tornando invisível até seus olhos - uma arma geralmente usada em guerras, mas, muito bem aproveitada na arena pelo meu adversário. Além de alto, ele era largo como uma muralha e sua arma também surpreendia. Arma a qual ele dominava de uma forma a só me dar tempo de me esquivar, sem conseguir pensar nada além de me manter vivo. Meu escudo era inútil naquele combate, pois era evidente que se eu tentasse bloquear, meu braço seria esmigalhado junto com o metal no impacto. Por poucas vezes eu consegui atingir sua armadura, e mesmo assim, sem provocar nem um arranhão. Um inimigo realmente indestrutível.

Virei-me para meu oponente assim que terminei meu rolamento. Ele andava em minha direção apoiando a espada no ombro com uma das mãos, desleixado. Um blefe! Sua guarda estava aberta, mas sua mente já estava com o contragolpe preparado assim que eu tentasse atacar - fingi morder a isca. Investi em sua direção, sua espada se ergueu no ar e desceu com o peso de uma avalanche, como previ. Esquivei para direita, a lâmina afundou pesada no chão e eu chutei seu punho com toda força. Inútil. Desarmá-lo parecia minha única chance de vitória, mas o bastardo usava uma manopla de segurança. Ele nunca soltaria a arma. Desgraçado!

Um riso abafado pelo metal saiu de seu elmo e, com uma força descomunal, ele girou a espada em minha direção. Fui obrigado a golpear a lâmina de baixo para cima com meu escudo, na tentativa de desviá-la. Mal calculado. A lâmina atingiu meu escudo e, como esperado, estraçalhou-o. Tropecei alguns passos para trás com o impacto, tentando não tombar, sentindo meu braço latejar enquanto os restos de metal despencavam pelo chão. Parecia que um mamute havia pisoteado meu punho. Já não domava minha respiração de tão ofegante. Parecia que meu fôlego não me permitiria nada além de erguer meu escudo e minha espada. Encarei os vãos negros do visor do meu adversário.

A vida nas arenas é sempre incerta. Nossa vida pode terminar a qualquer momento, basta encontrar um adversário mais forte. O público estava em êxtase. Ausohlung, meu adversário, era o campeão daquela arena há alguns anos, o Tigre Atroz, como era conhecido. Seu povo o amava e ele defendia a honra de sua pátria e da tradição guerreira local. Eu não tinha a menor chance.

Ele ergueu sua espada em posição de lança, na altura de seu peito e veio em investida. Abaixei-me, deixando a lâmina passar por cima de mim, agarrei sua cintura e com um urro de força e ímpeto, aproveitei o impulso de meu adversário, ergui seu corpo do chão e joguei-o para trás, fazendo-o dar uma cambalhota pelo ar. Sem perder tempo, ataquei com minha espada na direção de seu elmo, mas ele bloqueou com sua arma. Antes que eu pudesse pensar em outro ataque, o maldito rolou pelo chão e se levantou, voltando à posição de guarda, dessa vez nem tão desleixado. Pelo visto, além de dominar sua arma, Ausohlung também tinha total domínio de sua armadura.

- Devo agradecer-lhe, Draco! Havia anos que eu não sentia tanta adrenalina em um combate! Ainda mais vindo de um forasteiro! Meu povo estava precisando de uma emoção como esta!

Eu ainda tentava recuperar o fôlego enquanto ouvia sua voz abafada.

– Você será eternamente lembrado em nossas histórias! Sinta-se honrado, pois meu povo jamais se esquecerá da batalha entre Ausohlung, o Tigre Atroz, e Draco!!! O imortal campeão de Gorgomok e aquele que foi digno de morrer em suas mãos!!

Ausohlung levantou sua espada com as duas mãos sobre os ombros, pronto para descê-la e partir-me ao meio. E então, eu não sei o que houve, mas minha mão agarrou firme minha espada, minhas pernas pegaram impulso, senti meus olhos queimando em ódio, minha mente focada em vencer, meu espírito dominado por frenesi. Meus braços arderam como brasas e minha espada ferveu como magma. E, naquele instante, a única coisa que eu não senti, que pareceu sumir em vácuo, foi meu coração.

Um único corte. De baixo para cima, em um ângulo diagonal da esquerda para direita. Meu corpo girou, meu braço acompanhou o movimento, minha lâmina golpeou e a muralha de aço foi aberta. Estilhaços de metal voaram pela arena,o sangue pintou a mim e ao chão de rubro e o corpo de metal caiu para trás.

O público ficou atônito. Seu campeão havia sido derrotado. Um estrangeiro se mostrou superior em combate. Eu respirei fundo, senti como se o ar trouxesse de volta minha consciência e ouvi os aplausos. Alguns ainda confusos, outros eufóricos, uns gritando ofensas e ameaças. Mas o povo de Gorgomok amava a batalha acima de tudo e aquela havia sido uma grande batalha. Os aplausos dominaram a arena como uma onda que só revela seu real tamanho à beira da praia ao ponto de tornarem-se ensurdecedores.

Por um instante questionei-me se realmente havia sido eu a desferir o golpe final. Talvez fosse confortante duvidar de que havia sido por tamanha violência e tamanho ódio que houve naquele desfecho. Mas não havia como negar, fui eu. Por mais que não tivesse explicação para aquilo, havia sido eu. Naquele momento que talvez mal tenha durado um segundo, eu odiei, eu ataquei e eu venci a batalha. Nada, nem ninguém, agiu por mim. O mérito daquela vitória e de todo o sangue derramado era meu.

Por que viver pela espada? O que significa ser um guerreiro legítimo? Vencer? Proteger? Atacar? Aperfeiçoar? Honrar? Vingar? Buscar? Destruir? Onde será que encontrarei minhas respostas? Quando será que encontrarei um adversário mais forte do que eu? E quando encontrá-lo, conseguirei superá-lo? Morrerei tentando? Vivendo ou morrendo... Encontrarei minhas respostas?

Meu prêmio me aguardava no centro da arena: uma espada encravada numa pedra, bem ao estilo dos menestréis. Uma bela arma, a empunhadura tinha o espaço preciso entre o pomo e a guarda para caber uma mão e sobrar um pouco para o manuseio, a guarda de aço ornamentada com fios em relevo, o pomo arredondado com o peso certo para contrabalancear a lâmina, que por sua vez, era reta, com dois gumes, pontuda e rubra - cor obtida através da magia que encantou a arma, um técnica conhecida apenas em Gorgomock -, um prêmio realmente magnífico. Todo ano uma nova arma era forjada e disposta como prêmio do torneio. Ausohlung colecionava as espadas, machados, lanças e martelos que já haviam sido ofertadas ao campeão anteriormente, mas, a deste ano pertencia a mim. Retirei a espada da pedra e a platéia foi ao júbilo.

Mais um reino visitado. Algumas batalhas vencidas. Mais uma grande vitória em minha carreira. Mais uma vitória em minha vida. E a certeza de que ainda havia muita estrada para percorrer. O sol se pôs em Gorgomok, o povo festejou até esgotar todo o dinheiro das apostas... E um guerreiro se preparou para próxima viagem.