terça-feira, 29 de maio de 2012

2 - Tony


- O lorde de Winterfell convocou todas as casas juramentadas. Estaremos partindo em campanha em breve.

- O lorde de Winter está morto, senhor.

- E ele deixou um sucessor. Está me chamando de idiota ou bancando um?

- Perdões, senhor.

Fazia um mês que Robb Stark havia partido para o sul jurando vingar seu pai, Eddard Stark, executado a mando do Rei Joffrey Baratheon. A maioria das casas já haviam se unido ao novo lorde, mas o norte ficaria numa posição extremamente delicada. Sem os senhores e sem o próprio lorde, a criminalidade aumentaria muito e até casas menores poderiam despertar interesses mesquinhos em vez de honrar o chamado de Robb. O que aconteceu com a casa Dorgauld foi ainda pior: uma antiga família rival das Ilhas de Ferro aproveitou a partida de Robb Stark, invadiu o norte e conquistou o território da família. Não podia-se esperar menos dos Blacktide, vassalos dos Greyjoy.

Sor Arthur Bjorn socou a mesa.

- Está acordado, Tony!?

- Sim, pai, estou!

Tony Bjorn era o herdeiro de Arthur. Doze anos e ainda relutante para aprender a governar - o que só fazia seu pai ficar ainda mais severo. Os dias de Tony eram divididos em quatro etapas: treino com armas, estudos, observação dos afazes de seu pai - como ouvir aos pedidos dos fazendeiros ou participar de um conselho de guerra - e descanso. Seria a primeira vez que o herdeiro ficaria responsável pelas terras e Arthur não queria que nenhum chefe da guarda ou meistre fizesse seu trabalho - isso era dever de seu filho e ninguém mais, e assim seria.

- Não irei embora enquanto os vassalos dos Greyjoy pensarem que são meus vizinhos. Amanhã resgataremos os Dorgauld e só então partirei.

- Eles estão em vantagem, senhor. Já conquistaram todo o território.

- E nós tomaremos de volta.

- Quando partirei, senhor?

- Não partirá. Ninguém é louco de invadir minhas terras sabendo que você está aqui e você só sairá quando formos para o sul. Enviaremos trezentos homens. Meus dois sobrinhos e o bárbaro liderarão a invasão.

No conselho de guerra, Arthur e Tony Bjorn, Meistre Sabin e os três capitães, Howard, Lance e Anthony. Meistre Sabin havia conversado com Arthur em particular e já sabia que seu senhor já decidira tudo antes da reunião. Tony estava lá como ouvinte. Entre os três capitães, o de maior prestígio era Anthony - e também o único que tinha coragem de debater com o Arthur.

- Mandará inexperientes para o combate?

- Estaria me questionando se o seu filho ainda fosse sargento?

Anthony engoliu seco. Era um homem honrado e não guardava remorsos pela humilhação de Frederick, mas era impossível não estar magoado. Seu filho havia perdido o posto para o bastardo.

- Então, senhor, serão Elesehr, Lothar e o bastardo, os responsáveis pela invasão?

- O bastardo é um sargento, preste o devido respeito aos seus subordinados, ou eu mesmo o desafiarei a um duelo em defesa da honra de meus homens.

Anthony pensou em mil respostas para o seu senhor. "Honra de um bastardo?" foi até a ponta da sua língua, mas ele engoliu de volta. Ninguém tinha nenhum amor por Galwin, mas ele era sargento por mérito próprio. Sob o comando de Arthur, nada se ganhava por base de favores, apenas por méritos. O general sabia que seu senhor não tinha afeição pelo sobrinho, mas agora havia algum respeito.

Apesar de que o bastardo poderia morrer enfrentando os Blacktide e isso seria a resolução para alguns problemas.

- Sim, senhor. Os sargentos Elesehr, Lothar e Galwin liderarão o ataque. As tropas deles já estão organizadas?

- Essa será a sua tarefa. Os três foram nomeados recentemente e ainda não têm tropas definidas. Uma unidade de arqueiros para Elesehr, uma de infantaria para Lothar e uma unidade de infantaria para Galwin. Caso eles falhem, enviaremos mais trezentos homens e aniquilaremos os Blacktide.

- Então, o senhor considera a possibilidade de falha?

- Se eu der homens experimentes para sargentos novatos, eles não aprenderão nada! Os homens farão o trabalho por eles e ainda ficarão insatisfeitos por serem liderados por garotos. Se eles não vencerem com a própria estratégia, a própria tática, a própria força, não aprenderão nada e isso só será problema para mim. É melhor ter poucos homens fortes do que muitos fracos. Isso será uma conquista e um teste. Não só para os três, como para todos os trezentos.

- Muito sábio, senhor. E depois de resgatarmos os Dorgauld? Qual será nosso próximo movimento?

- Os sargentos que voltarem vivos serão os responsáveis por manter minhas terras enquanto eu estiver na campanha de Robb. Dos trezentos, duzentos marcharão conosco e cem ficarão aqui, junto da guarda. Se voltarem apenas duzentos, cem marcharão e cem ficarão. Se voltarem apenas cem, os cem ficarão.

Arthur olhou gravemente para cada um de seus subordinados. Ele sabia que era temido por quase todos ali, exceto Anthony e Sabin, o que o enojava. Queria homens corajosos o suficiente para falar o que pensavam, para apontar as falhas de seus planos, não maricas que lamberiam suas botas caso ele ordenasse. Infelizmente, naquele momento, eles eram tudo que ele tinha - mas, a guerra mata os fracos e fortalece os sortudos, o que resolveria essa questão por si só.

- Alguma dúvidas, senhores?

Todos assentiram com a cabeça em negativa.

- Estão dispensados.

Os subordinados se levantaram e foram cuidar de seus afazeres. Arthur segurou o ombro de seu filho e o impediu de sair.

- Filho - o pai tinha que olhar para baixo, pois o jovem mal alcançara sua cintura. Ele realmente queria que Tony aprendesse a governar suas terras, pois daria a vida pelos Stark caso fosse necessário e não podia deixar um filho fraco para cuidar de seu legado. - Espero que esteja aprendendo mais a cada dia.

Tony tentava disfarçar o sono e o tédio.

- Sim, pai, estou aprendendo. Não se decepcionará.

- Que bom. Pois, quando os três sargentos voltarem da batalha, você escolherá de qual deles será escudeiro. E, nas próximas batalhas, você estará presente.

Tony gelou por dentro. Muitos jovens da sua idade já se imaginavam capazes de liderar tropas e vencer guerras, mas não era o caso do herdeiro. Para ele, assumir as responsabilidades do pai era um mal necessário e desejava profundamente que só precisasse fazer isso em tempos de paz.

Porém, se limitou a responder:

- Sim, pai.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Atrás das Grades

Soou a sirene, hora de recolher. Cada um num ritmo vagaroso parando de fazer o que fazia e se dirigindo, sem a menor pressa, para os corredores. No começo, eu fazia careta na hora de recolher - todos faziam -, mas chega uma hora que já é natural. Estar dentro da cela é tão normal para um presidiário quanto estar dentro de um escritório é para um cidadão: é onde passamos a maior parte dos nossos dias não fazendo nada.

Eu estava sentado num banco, olhando os outros jogarem bola. Minha cara era sempre a mesma, não importava se fizesse frio, calor, sol, chuva, se jogavam bola ou se espancavam alguém no meio da quadra. Alguns já me conheciam, outros haviam chegado depois da minha última estadia aqui. Deve ser a terceira vez que venho parar nessa jaula. Deve fazer algumas semanas que eu voltei e até que passou rápido. Não é tão ruim depois que se acostuma. 

Levantei desleixado e fui arrastando os pés em direção ao portão. Os guardas só olhavam, sabiam que ninguém iria tentar nenhuma gracinha, mas sempre olhavam com cara de emburrados. Palhaços. É só meia dúzia de presos se revoltarem que metade se borra todo. Alguns dos meus “colegas” ainda mantinham a empolgação do jogo, se empurrando e se xingando. Outros pareciam imitar os guardas, fazendo bico e olhando de cima p'ra baixo. Nada havia mudado. 

Enquanto andava, entrando aos poucos na fila que se formava no caminho para o portão, minha visão começou a escurecer. Uma sombra começou a cercar as bordas dos meus olhos, como fumaça, deixando apenas dois pequenos globos visíveis no centro. Pisquei e tudo voltou ao normal – pensei que fosse sono. Continuei andando e as sombras voltaram. Devagar, mas perceptíveis, pisquei e elas se afastaram, mas não por completo. Ficou tudo negro, pisquei e um pequeno globo se abriu e logo se fechou de novo. Senti meu ombro esbarrar no portão aberto, mas já não enxergava nada. Senti minha cabeça pesar no meio da escuridão, comecei a piscar repetidamente, tentando fazer minha visão voltar, mas não funcionava. Cai de joelhos sentindo tontura, esfreguei os olhos, pisquei, pisquei, pisquei, pedi por ajuda sem ser atendido, arregalei os olhos, mas tudo era negro. Ouvi a batida grave do portão atrás de mim. Ouvíamos o portão batendo todos os dias, mas, dessa vez foi mais sonoro, pareceu até ecoar, como se tudo fosse vazio ao meu redor. 

Aos poucos, minha visão foi retornando, mas ainda limitada, como se eu estivesse me acostumando a enxergar no escuro. E realmente estava. 

Olhei para o portão, ainda fazendo careta para forçar os olhos, e pude observá-lo de perto. O ferro parecia enferrujado, como se estivesse abandonado há décadas. Cheguei mais perto e o fedor de ferro desgastado se tornou nítido. Havia ferrugem em toda a parte. Ele estava realmente apodrecido e não era impressão minha. Encostei minha mão no ferro e olhei para meus dedos: estavam imundos. Não era ilusão. A visão, o cheiro, o tato, era real. 

Mas, que diabos era aquilo tudo? 

Olhei ao meu redor. Meus olhos já pareciam estar normais, limitados apenas pela escuridão do corredor. Caminhei podendo ver apenas a silhueta do outro portão que levava até a ala B1. Cheguei perto e ele parecia estar igualmente desgastado, todo cinza e negro de ferrugem e imundice. Tive que forçá-lo para sair do lugar, fazendo um rangido estridente, longo e incômodo. Fiquei um tempo parado na passagem, tentando enxergar algo - em vão. Bati palmas limpando as mãos e entrei. 

Dentro da ala B1, pude ver apenas as barras das celas e a porta para o corredor da ala, nada mais. Olhei para as paredes, para o teto, para o chão. Minha única noção de espaço eram as barras e a porta. Andei, ficando mais ou menos no centro da ala, insistindo em tentar ver algo. Após alguns instantes, eu desisti e pus-me a andar em direção ao o portão. 

Atravessei, passei por um corredor curvo, tendo que me guiar com a mão na parede. Mal vi a porta na minha frente e precisei apalpá-la para achar a maçaneta. A textura de tudo era extremamente decadente e suja. Engoli seco, segurando o nojo. Talvez, não ver era melhor do que ver o que eu estava encostando. 

A ala B2 se encontrava na mesma situação. Acreditar que aquilo era real era estúpido demais e, ao mesmo tempo, negar aquelas sensações seria inútil. Até o ar que eu respirava era diferente, mais parado, pesado, escasso, mas era ar. Não podia enxergar as paredes e nem o chão, mas podia senti-los a cada passo. Não podia enxergar o teto, mas tinha noção de que havia algo acima de mim. 

Caminhei, tentando olhar cada uma das celas. Tudo no mais absoluto silêncio. Alguns diriam que o lugar parecia morto, mas até morte parecia distante ali. Nem vida, nem morte. Nem pós-vida e nem não-vida. Apenas silêncio e escuridão. Mas, as barras das celas, de alguma forma, me aliviavam: elas ainda existiam, diferente de todo resto. Elas me traziam a segurança de que eu ainda estava no mesmo lugar e que as coisas ainda estavam onde deveriam estar. Fiz questão de olhar na direção de todas as celas, uma por uma. Esquerda e direita, esquerda e direita, esquerda e... E nada na direita.

Eu conhecia bem aquela prisão e todas as celas pareciam estar em seus lugares, exceto a B14. Ela estava sem grades. Me aproximei, tentando enxergar o que havia de errado. Senti a parede com a mão e estiquei um pouco o pescoço para dentro do bloco vazio, onde deveria ser uma cela. Os olhos espremidos, tentando flagrar algo. E então, um movimento. Dei um passo para trás, sem entender o que havia visto. Outro movimento. Respirei fundo, tentei ignorar o suor escorrendo pelo canto do meu olho, me mantive firme. Outro movimento. Algo estava pulsando. 

Então, um grito. Agudo e rasgado, cheio de dentes. Pulei para trás e cai no chão. Olhos arregalados, queixo tremendo. Uma mão com garras longas e finas se esticava, tentando agarrar algo, os olhos esbugalhados, cheios de maldade, me encaravam fixos, a boca repleta de espinhos e cravos desordenados, a pele pálida, nitidamente suja, solta aos ossos, quase nenhuma carne. O bicho se esticava, arranhando o chão, rosnando e gritando bestialmente. Seja lá o que era aquilo, queria me alcançar. Mas não podia andar, estava preso. Parecia estar preso pelos pés a algo. Dane-se, eu não precisava saber mais do que já havia visto. 

Aquilo foi o suficiente pare eu me desesperar. Dei um encontrão na porta que eu sabia que estava atrás de mim e subi correndo pelas escadas. Cheguei à ala B4. Tudo continuava na mais completa sombra, mas isso pouco importava naquela hora, eu precisava correr, não importava por quê, não importava para aonde. 

Segui para minha direita, aonde eu sabia que teria uma porta para ala B3. Disparei em passos largos, mas apenas três, até uma garra vir do teto, em direção ao meu rosto. Meu instinto mais puro e primitivo me salvou, me fazendo girar o corpo e cair no chão, olhando para cima. Tinha outra daquela criatura no teto, presa pelo tronco. O bicho gritava enquanto empurrava o teto, tentando se soltar, e me encarava, lançando uma garra em minha direção em meio aos solavancos contra o concreto em sua cintura. Eu senti meu coração esmurrando meu peito, como se quisesse sair de dentro de mim com um pontapé. 

Levantei cambaleando e corri. Atravessei a porta, dei mais alguns passos, mas tive que parar, desorientado. Meu desespero era tanto que havia parado de prestar atenção no caminho e simplesmente não tinha mais a menor noção de onde estava. Olhei ao meu redor identifiquei algumas barras das celas, uma porta no caminho oposto da qual entrei e uma outra porta na parede oposta às celas, provavelmente para uma escada. Pensei em qual caminho seguir e este foi o meu maior erro daquele dia. 

Eu não sei por quanto tempo aquele som já estava lá até eu percebê-lo, mas eu percebi. Um rosnado. Baixo, contínuo, semi-rouco. Mais do que uma ameaça, era um aviso. Aviso de que iria atacar. Me dei conta de que havia um espaço vazio entre as barras. Havia uma cela aberta. Dela, um passo depois do outro, uma figura não muito alta, fina e pálida, saiu. Este não estava preso em nada, apenas mantinha os braços atrás do corpo. Eu hesitei. Ele mostrou as presas. 

E avançou. 

Baba e cuspe transbordaram da investida. Pulei para a esquerda, deixando o bicho passar direto. Por trás dele, pude ver seus braços presos um no outro pelos punhos, com as mãos entrelaçadas, fixadas uma na outra. Rapidamente, ele se virou em minha direção e veio de novo. 

Dessa vez, interrompi o ataque com um chute no queixo do monstro, empurrando-o para trás. Ele capotou no chão, mas logo se levantou, compensando os tropeços com a fúria. Correu, ainda cambaleando, para cima de mim. Esquivei pela direita e passei a perna na dele, fazendo-o tropeçar novamente. Aproveitei a chance e corri em direção à escada, encontrando a parede. Tateei o concreto, mas nada de porta. Ouvi um latido molhado atrás de mim e me virei para me defender. 

O monstro já a alguns centímetros do meu rosto. Segurei sua testa e seu ombro, tentando empurrá-lo, mas dessa vez, eu é que fui para o chão. Tombei com força e ele veio junto. A boca chegando a menos de um palmo do meu rosto, o bafo insuportável e a força movida pelo frenesi cego. Empurrei, chutei e soquei. Minha única vantagem era o bicho não poder usar os braços, senão, teria sido meu fim ali mesmo. Depois de alguns empurrões, consegui afastá-lo o suficiente para chutá-lo, fazendo-o cair para trás. Tentei me levantar, me arrastando no chão, mas meu braço falhou e eu só pude me afastar, enquanto ele preparava outro bote. 

Ainda no chão, braços tremendo descontroladamente, respiração disparada, coração me chutando por dentro, suor por todo o corpo, ele veio. Tentei chutá-lo, mas não tive força, atingindo apenas sua coxa, fazendo-o despencar em cima de mim. Empurrei seu queixo para o lado com as duas mãos, mas ele logo girou e se apoiou com os joelhos, me atacando. Fui empurrado contra a parede, ele com um joelho e um pé no chão, ganhando estabilidade, usando a força do tronco. Segurei o queixo e a testa, empurrando com o que ainda restava da minha força. Berros, empurrões, suor. Meu braço cedendo. 

A cada segundo, um centímetro mais perto e o bafo abissal se aproximando. Dentes como navalhas abertos desejando fechar com meu corpo dentro. Tremedeira, calafrios, desespero. Meus braços cederam, meus olhos fecharam. Meu corpo entregue.

E o mundo, aos poucos, foi clareando.

Alguns risos. A voz de um policial: 

- Hei, Trevor. Caiu de maduro? 

Uma mão me segurou pelo braço e me ergueu do chão. 

Meus olhos ardiam, senti frio pela roupa encharcada. Aos poucos, a visão foi se acostumando. 

Alguns me olhavam espantados, outros apenas riam. 

- Olha só p’ra esse cara. Parece que viu um fantasma. Hei! Trevor! Não diga que se borrou também. 

Silêncio. Eu ainda piscava pelos olhos ardendo. 

- Tsc, leva logo ele p’ra jaula, não temos tempo p’ra palhaçada. 

Fui conduzido até minha cela. Confuso. 
 
Ouvi o som da grade estalando repetidamente enquanto se fechava, finalizado pelo bater do portão de aço. Cocei o rosto, esfregando a palma da mão nos olhos e puxando as bochechas e a boca para baixo com os dedos. Tontura. A blusa estava mais seca, mas ainda incômoda. 

Ser presidiário era moleza. Tudo sempre igual, sem novidades. Assaltar para viver já nem parecia arriscado. 

Mas, se eu já estava acostumado com um inferno, um outro começou a surgir e eu simplesmente não estava preparado para aquilo.