domingo, 5 de agosto de 2012

Encruzilhada


Foi uma longa viagem de Arena para Pena Dourada. Meu mestre me aguardava em seu templo e eu ainda tinha um dia de viagem pela frente. Fanfarra, meu cavalo, estava amarrado em uma árvore próxima a minha fogueira, enquanto eu terminava de acender os incensos para a minha meditação.

Sentei-me de pernas cruzadas a um metro da fogueira, sentindo o suor se formar em minha sobrancelha e o vento gelado soprar em minhas costas. Pousei minha espada em meu colo e permiti que o odor doce dos incensos entrasse em harmonia com o odor das árvores ao meu redor.

Inspirei uma vez. Lembrei de minha juventude ao lado de meu mestre, dos treinos com espadas, dos ferimentos causados pelo simples desacostume com uma armadura, das horas diárias de corrida, das palavras de sabedoria. Eu me orgulho do treinamento que tive. Orgulho-me de ser pupilo de um homem que atingiu o equilíbrio entre virtude e poder.

Inspirei mais uma vez. Ele me dizia que havia tido um pupilo parecido comigo, mas que havia se desvencilhado. Um pupilo com um grande potencial, mas impaciente e agressivo. Um pupilo que havia se perdido em vícios, se tornado um assassino sem escrúpulos, que acabou por ser expulso do templo.

Inspirei mais uma vez. “O que nós devemos ter antes de termos uma espada?”, meu mestre me perguntava. “Virtude”, eu respondia, como havia aprendido com ele. “E o que devemos ter enquanto empunhamos uma espada?”, meu mestre perguntava. “Virtude”, eu respondia com disciplina. “E o que devemos ter após uma batalha?”. “Virtude”.

Inspirei mais uma vez. Eu prometi ao meu mestre que me tornaria um guerreiro. Prometi que a morte nunca seria a minha finalidade. Em meus treinos, aprendi que a satisfação da luta está na auto-superação e na vitória, não no sangue derramado. Matar um criminoso ou um tirano é fazer justiça. Matar inocentes é vilania. Matar pelo prazer de tirar uma vida é permitir ser consumido por trevas.

Inspirei mais uma vez. Mas existe uma encruzilhada entre o caminho de um guerreiro e o caminho de um assassino. Meu mestre havia me avisado que seria inevitável passar por esta encruzilhada e que haveria alguém me esperando nela.

Eu perguntei se seria o seu ex-pupilo, mas meu mestre disse que não, que seu ex-pupilo já estava longe no caminho dos assassinos. Meu mestre me avisou que quem estaria me esperando na encruzilhada seria eu mesmo.

Fiquei confuso com a resposta, pedi explicação, mas a única coisa que ele me disse foi: “Quanto maior a sua luz, meu pupilo, maior será a sua sombra”.

Ouvi passos.

Abri meus olhos, empunhei a espada e me levantei. A fogueira estava em brasas e logo se apagaria por completo graças ao vento. O ar estava cada vez mais frio e incômodo. Os passos vinham em minha direção, pela frente – alguém queria ser percebido. Permaneci em silêncio, esperando para ver quem ousava interromper minha meditação. Fanfarra relinchou, agitado.

Vestia uma armadura de couro recoberta por peitoral, ombreiras, saiote, botas e manoplas de aço, empunhava uma espada longa na mão canhota e um escudo de metal na outra. Cabelos aparados, castanhos e queixo erguido, forte e orgulhoso. Encarei-o nos olhos, mas não vi nada, pois havia fendas no lugar dos olhos e, ao redor, seu rosto era quebradiço e com rachaduras. Mesmo sendo perturbador, vi que estava enganado, que havia algo nas cavidades, alguma essência, mas não consegui identificar o quê. Sei que não estava vazio por dentro, havia algo. Eu poderia dizer que estava diante de um espelho, exceto pelos olhos e, espero eu, pela essência.

Por muito tempo eu me questionei qual era o caminho de um guerreiro. Ainda não tinha a resposta, mas acho que havia chegado à encruzilhada.

Ele ergueu o escudo e a espada, exatamente como meu mestre havia me ensinado. Sem cerimônias, eu corri em investida. Ele bloqueou com o escudo e contra-golpeou com uma estocada. Girei em esquiva e descrevi um arco horizontal, mirando nas costas do meu adversário. Ele se agachou, pegou impulso nas pernas e estocou mais uma vez. Escapei por pouco, mas ele conseguiu abrir um corte na minha costela, embaixo da axila. Dei alguns passos para trás, recuperando a guarda. Ele sorriu.

Golpeei girando minha espada da esquerda para a direita em sentido vertical, mas ele deu um passo para trás, se esquivando e logo avançou. Bloqueei o primeiro golpe com o escudo, aparei o segundo com a espada, o terceiro acertou meu antebraço esquerdo, me fazendo largar a espada, o quarto acertou minha coxa direita, derrubando-me de joelho no chão.

Meu inimigo agarrou meu cabelo e encostou lentamente a sua espada na minha garganta. Posicionou com precisão. Ouvi um grito.

Senti um vento úmido e forte soprar em meu rosto, me fazendo abrir os olhos. Eu estava ajoelhado em meu acampamento. A fogueira e os incensos pareciam ter acabado de apagar. Fanfarra estava agitado. Não havia sido um sonho. Seja lá o que havia sido, não era um sonho. Mas de quem foi o grito?

- Mestre!

Arrumei minha mochila de viagem, montei em Fanfarra, arrebentei a corda que o prendia com a espada e pus-me a cavalgar. Sei que meu cavalo estava cansado, mas eu precisava alcançar o mestre o mais rápido possível. Eu sei que ele nunca estaria em perigo. Sei que nada era ameaça para ele. Mas algo estava errado e eu não podia ficar de braços cruzados.

O percurso que levaria mais um dia cavalgando, eu e Fanfarra fizemos antes de terminar a madrugada. Não consegui manter minha mente focada em nada positivo. Nunca havia saído tão agitado de uma meditação.

Assim que cheguei diante da escadaria do templo, amarrei Fanfarra em qualquer árvore e subi correndo pelos degraus. As árvores pelo caminho que costumavam ser tão vivas pareciam paradas e frias. A lua que costumava brilhar como prata estava cinza e agourenta. Ou talvez tudo estivesse normal e eu que estivesse mórbido.

Atravessei as pilastras cheguei ao portal do templo. Tudo estava em silêncio. Tudo estava imóvel. Quebrei a estabilidade da madrugada e abri o portal.

- Não... Impossível...

Em cada parede e em cada pilastra, havia uma marca de batalha. Vasos e estatuetas não eram mais do que migalhas espalhadas pelo templo. Na parede, ao fundo, havia uma estrela invertida de sete pontas desenhada em sangue e logo abaixo, no chão, jazia o corpo de meu mestre, assassinado.

2 comentários:

  1. Temo ser repetitiva, mas você realmente está de parabéns.
    Mais um conto incrível, com detalhes dados com maestria. Adorei.

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  2. Adorei a descrição do confronto! Parabéns!

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