segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Parto

Primeiro dia:

A porta de minha casa se abriu numa pancada violenta. Levei um susto tremendo.

– Ágata! – Era meu marido me chamando.

– Amor!

Ele estava se apoiando com as mãos pelas paredes e com uma expressão terrível de dor
no rosto. Larguei a comida no forno à lenha e corri até ele. Apoiei seu braço em meu
ombro e o conduzi até nosso quarto. Pensei que não fosse conseguir chegar até lá de tão
pesado e fraco ele estava. Quando enfim consegui deitá-lo na nossa cama, percebi que
ele ardia de febre e suava frio. Entrei em desespero.

– Ágata! Ágata! Minha cabeça! Minha cabeça dói! Pelo amor dos deuses, faça isso
parar! – Ele agarrava minha roupa e me puxava e eu não sabia o que fazer. – Faça isso
parar! Faça isso parar! – Ele repetia até que soltou minha roupa e agarrou a cabeça, se
encolhendo na cama e gritando de agonia.

Corri para a cozinha e preparei um chá. Foi inútil, pois ele não conseguia beber.
Não conseguia se sentar e nem comigo servindo em sua boca ele conseguia engolir.
Derramei chá no meu marido e o sujei todo até desistir.

O drama durou horas. Eu chorava e segurava a mão dele, rezando baixinho para que
aquilo passasse. No meio da madrugada, ele adormeceu. A febre continuava alta, mas
ele enfim descansava. Fiquei aliviada e dormi também.

Mas, antes, rezei para que aquilo nunca mais acontecesse.

Segundo dia:

Meu marido dormiu o dia inteiro. A febre melhorou, mas ele nem sequer se moveu na
cama. Estático. Apenas respirando.

Imaginei que ele estava se recuperando da febre.

Cuidei de meus afazeres domésticos durante o dia e deitei ao seu lado à noite. Adormeci
tranquila.

Acordei de madrugada com um barulho na cozinha. Meu marido não estava ao meu
lado.

Temerosa, fui verificar o som. Encontrei meu marido arfando e agitado remexendo os
armários.

– Amor?

Ele se virou para mim parecendo um bicho faminto.

– Onde está a comida?

– Eu preparei uma salada, deve estar fresca ainda, vou buscar.

– Salada? Salada?! Eu estou faminto e você me vem com salada?! Sabe que eu trabalho
a merda do dia inteiro e quer que eu coma a mesma comida das lebres?! Onde está a
carne?!

Eu estremeci com os gritos dele. Senti vontade de chorar de medo e vergonha.

– Amor, não precisa falar assim...

– Você é uma inútil! – Ele berrou e saiu batendo a porta dos fundos.

Como ele pôde me tratar daquele jeito logo depois de eu cuidar dele? Não aguentei e
comecei a chorar – poucas lágrimas, logo passaram. Fiquei esperando que ele voltasse
até que o dia começou a amanhecer e eu caí no sono.

Mas, antes, rezei mais uma vez para que aquilo nunca mais acontecesse.

Terceiro dia:

Acordei no meio da tarde. Minha cabeça doía um pouco. Devo ter dormido demais.
Levantei e fui até a sala.

Meu marido estava esparramado na poltrona mordiscando um osso. Aparentemente,
ele havia comido uma peça inteira de algum animal. Ele estava sujo de sangue – muito
sangue. No seu rosto, na sua roupa, pela poltrona e pelo chão.

– Amor, o que é isso? – eu não acreditava no que eu via.

– O que é? – ele respondeu sem nem olhar na minha cara.

– Essa sujeira toda! Você podia ter me acordado que eu preparava o seu almoço.

– Já que você quer me servir, faz o seguinte: prepara um chá pra mim, a dor de cabeça
tá aqui ainda – ele disse apontando para a cozinha, ainda sem dirigir o olhar. Senti-me
insultada, mas considerei que ele devia estar doente ainda e fui atender ao seu pedido.

Fui para a cozinha, peguei algumas ervas que ele gosta e preparei um chá bem docinho
para agradá-lo. Levei o chá até a sala e ele me recebeu com mais humilhação:

– Pensando bem, pensando bem... Não quero chá porra nenhuma não. Faz um suco aí
pra mim.

Não pude aceitar aquilo:

– Isso é jeito de se falar com sua esposa?

– Poxa, amor, seu homem tá doente... Vai negar um suco pro seu homem doente?

Respirei fundo para não brigarmos e voltei à cozinha. Joguei o chá fora, peguei algumas
laranjas e comecei a espremê-las para preparar seu suco. Meus dedos já doíam um
pouco quando terminei, peguei o copo e levei à sala. Mas ele ainda não havia se cansado
de me humilhar.

– Quer saber? Quero mais suco não! Trás uma água! – Ele não aguentou e se pôs a
gargalhar. Ria alto e com a boca bem aberta, segurando a barriga.

Meu queixo caiu. Eu não o reconhecia. Ele nunca havia me tratado daquele jeito. Dei
as costas e fui para a cozinha. Respirei devagar tentando segurar o choro - eu não podia
chorar no terceiro dia seguido. E ele gargalhava.

Quando pensei que eu não ia conseguir e as lágrimas iriam transbordar, ele interrompeu
o riso e soltou um gemido doloroso.

Uma única lágrima escapou.

Fui até a porta e espiei meu marido. Ele estava se arrastando pelo chão em direção
ao nosso quarto. Segui cautelosamente. Debrucei-me pela porta do quarto e o vi se
ajeitando na cama. Corpo encolhido. Mãos na cabeça. Gemidos de dor.

O amor foi mais forte do que o medo.

– Amor?

– Ágata, minha cabeça vai se partir ao meio... Está doendo muito... Faz... Faz isso
parar...

E mais um dia se passou na cama com dores e lágrimas.

Dessa vez, esqueci de rezar.

Quarto dia:

Acordei cedo e meu marido não estava na cama novamente. Procurei pela casa e não o
encontrei. Fiquei aflita. Ele estava doente, não podia sair de casa sem me avisar.

Sentei na poltrona e senti o cheiro de sangue seco. Peguei um balde de água e um pano
para tentar limpar. Enquanto eu esfregava, a porta da casa abriu numa pancada e meu
marido entrou. Suado e ofegante. Pelo visto, havia trabalhado.

– Amor, onde você estava? Você não pode sair assim?

– Fui trabalhar. Alguém tem que cuidar dessa casa.

– Mas você está doente, amorzinho, não pode sair desse jeito.

– Sua voz é irritante, sabia?

Engoli seco.

– O quê?

– Isso mesmo que você ouviu! Sua voz enche o saco!

– Amor, o que há de errado com você?

– Uma esposa imbecil, é isso que há de errado comigo!

– Mas, amor... – Eu não queria mais brigar e faria de tudo para acabar com aquilo. Fui
até ele e abri os braços para abraçá-lo. Ele virou a mão na minha cara.

Foi um soco, na verdade. Um soco que me jogou no chão. Primeiro a pancada seca no
meu olho esquerdo, depois a tontura e sensação de vazio da queda e então o chão e a
batida de cabeça contra a madeira. Tudo doía. O olho, a cabeça, a dignidade e a alma.

– Cansei dessa merda! Cansei de você! Cansei da sua burrice e das suas palhaçadas! Sai
da minha frente!

Ele me apanhou pelo cabelo, me ergueu do chão e me arremessou para nosso quarto.
Cai ao pé da cama, ralando os joelhos e os cotovelos e batendo com a cabeça contra o
chão mais uma vez. Ouvi a porta batendo enquanto me recuperava das novas dores.

Eu chorava. Eu apenas chorava.

Um dia inteiro chorando.

Quinto dia:

Meu marido não entrou no quarto. Acordei e a casa estava em silêncio. Ele havia saído
de novo. Achei melhor assim. Depois, fiquei triste por preferir estar longe do meu
marido, mas continuei achando melhor.

Fui para a horta fazer o meu trabalho. Levei apenas a cesta e o chapéu. Mal havia
começado a colher alguns tomates e ouvi um barulho de coisa quebrando vindo da casa.
Meu estômago gelou.

Outra pancada. Sons de vidro se espatifando. Depois, sons de madeira rachando. Sons
da casa sendo destruída por dentro. Fui até a porta dos fundos e espiei.

Meu marido havia enlouquecido. Ele estava quebrando a casa. Chutando os armários
até afundar o pé na madeira. Pegando vasos e arremessando contra a parede. Pegando
gavetas de talheres e quebrando contra o joelho.

Mas ele não parecia só louco. Ele parecia maior. Os músculos pareciam quase rasgar a
pele, muito maior do que sempre foram. E a pele estava estranha também. Estava pálida.
Quase acinzentada. Ele me olhou. Prendi a respiração. Seus olhos pareciam menores
e mais escuros, com olheiras fundas e negras ao redor. Sua expressão era bestial.
Primeiro, pareceu que não me reconheceu. Depois, entendi que ele havia reconhecido
sim, e que havia odiado o que estava vendo. Ele veio para cima de mim e eu corri.

Apenas corri.

Sexto dia:

Acordei no meio da estrada e percebi que havia desmaiado. Corri muito além do que o
raciocínio me permitiria e acabei apagando por exaustão. Minhas pernas ainda doíam
de esforço. Pensei que fosse de noite, mas percebi que o sol começava a amanhecer e
entendi que já era o dia seguinte. Levantei-me e segui pela estrada de volta para minha
casa. Estava mancando um pouco, mas isso era o menor dos meus problemas.

A casa estava vazia e destruída. Estava tudo quebrado. Tudo. Não há como descrever o
que havia pelo chão porquê não havia nada na casa. Só destroços.

Fui até o que havia sido a cozinha, peguei uma faca no chão e a segurei com firmeza.
Fui até o que havia sido meu quarto e sentei no colchão que havia sido parte da cama. E
esperei meu marido chegar.

Mas ele não chegou.

Quando anoiteceu e eu percebi que ele não apareceria, fiz o que tinha que fazer:
levantei-me e comecei a andar. Segui a estrada e caminhei sem parar. No meio da
madrugada, alcancei a cidade e procurei uma taverna. Era lá que eu encontraria a
solução de todos os problemas.

Sétimo dia:

Os quatro aventureiros pagaram a minha janta e o meu quarto numa estalagem. No
dia seguinte, fomos até a minha casa. Mostrei tudo para eles e contei tudo. Eu estava
determinada até começar a falar. Fui lembrando e fui me fragilizando e chorei. Eu não
devia ter chorado, não na frente deles. A única mulher do grupo, uma elfa que trajava
um longo robe e portava um pesado tomo nos braços, me abraçou e me acalmou. Ainda
com o rosto molhado de lágrimas, terminei de contar a história.

Eu havia dito que precisava deles para matar um monstro, mas eu já não queria aquilo.
Eu queria salvação.

– Vocês podem? Podem salvar o meu marido?

Eles se entreolharam.

– O que acham? – Perguntou o homem de armadura de metal e espada e escudo nas
costas.

A elfa abaixou a cabeça e deixou escapar uma expressão de tristeza em seu rosto:

– O estágio está avançado demais. Agora, é irreversível.

Segurei as lágrimas.

– Como isso pôde acontecer? – perguntei sem querer aceitar os fatos.

A elfa hesitou, mas foi sincera:

– Provavelmente ele foi longe demais na floresta e deu o azar de encontrar uma fada
negra. Às vezes, elas conjuram magias de ilusão ou necromancia para assustar ou
machucar as pessoas. Às vezes, elas decidem se hospedar na vítima. A fada entrou pela
orelha ou pela boca dele e ele começou a se transformar num monstro. Agora, eles são
um só.

– Um troll... – Lamentei.

– Isso mesmo, um troll – ela confirmou.

Eu não sabia o que era necromancia, nem entendia nada de trolls. Apenas sabia que
monstros existiam e que eles matavam pessoas – e sabia que meu marido preferiria
morrer do que ser uma coisa dessas.

– Então, façam o que tiver de ser feito – declarei sem coragem de olhar para nenhum
deles.

Permaneci de olhos fechados e rosto virado. Logo, os aventureiros começaram a andar e
saíram da casa.

E eu chorei.