sexta-feira, 5 de abril de 2013

Abismos



Salão principal do castelo. Melodia dos Trovadores Etéreos no ar, a banda mais cara e sofisticada de Centrália. Lordes poderosos, damas requintadas e cavaleiros renomados bailando e degustando vinho. Tédio.


O Marquês Luthenburgo sempre apreciou bailes de máscaras. Este evento se tornou o mais famoso de Colinas Álgidas, esta cidade fria onde vivo. Uma vez por ano, um grupo seleto de convidados é trazido para seus aposentos para apreciar o melhor que o reino pode oferecer. Os que ficam de fora sentem inveja e remorso. Os que estão dentro são privilegiados, a mais alta classe da sociedade. Vir uma vez não é garantia de voltar no ano seguinte, apenas os nobres que se destacam na politicagem e na intriga local têm acesso ao baile - ou, aqueles que são alvos de interesse de algum bom amigo do marquês ou dele próprio.

Para mim, noite de desfrutar o banquete. De forma alguma irei saborear diversas iguarias, não posso me dar esse luxo - não aqui. Preciso escolher uma iguaria e conquistá-la. A escolha sempre é a parte mais difícil. Não aceito uma qualquer, mas também não posso ter o descuido de escolher uma já comprometida ou sob a proteção de um lorde presente. Precisa ser a iguaria certa, descompromissada, elegante e bela.

Caminhei pela mesa do banquete observando. Jovens e velhos bailavam. Grupos conversavam pelas mesas. Alguns tramavam pelos cantos mais discretos. Muitos cavalheiros desejando cortejar uma bela dama. Muitas damas desejando ser cortejadas pelo cavalheiro certo. A escolha é sempre muito delicada. Alguns jovens preferem conquistar mais renome para poder escolher uma candidata de mais alto nível. Outros, menos inteligentes, se demonstram ansiosos demais e acabam casando com a dama menos abastada, ou até cortejam uma dama já casada por engano e conquistam um inimigo vingativo. Todo o baile é um evento dentro do jogo da nobreza. Um jogo tolo e fútil - e os mortais nunca se cansam desta bufonaria.

Em pontos estratégicos, algumas damas aguardavam um convite para dançar. Uma jovem esbelta num vestido prateado decorado com pedras esbranquiçadas, cabelos loiros num complexo penteado empinado sobre a nuca e máscara de alça sorria convidativa para mim. Uma mulher de cabelos negros, vestido azul até o chão, decote farto e máscara cobrindo os olhos em formato de uma pequena coroa me observou com ar ferino, quase me desafiando. Uma terceira dama, especialmente bonita, vestido dourado arqueado nos ombros e no quadril, cabelos castanhos claros, lábios carnudos acentuados por uma pinta na bochecha esquerda e máscara com fios de ouro me olhava se fazendo de tímida. Belas, mas insatisfatórias.

Faltava pouco para eu tomar desgosto pelo baile quando, acidentalmente, reparei na sacada do salão. Quase que escondida, estava uma mulher, uma verdadeira dama - alguém que fazia todas as outras moças parecerem plebeias. Vestido de tecidos leves em tons de escarlate e vinho, cintura e busto justos ao corpo delicado, queixo fino, lábios e nariz estreitos e arrebitados, cabelos negros em cachos fartos, olhos azuis por detrás de uma máscara rubra e um leque da mesma cor abanando suavemente sua face. Toda dama de verdade sabe que o leque é a marca registrada da verdadeira elite.

Senti meus caninos pulsarem.

Enquanto eu a observava, ela discretamente me dirigiu o olhar e pareceu desprezar o que viu tanto quanto tudo naquele baile e voltou a olhar os mortais. Eu sorri enquanto era esnobado e logo ela retornou o olhar, dessa vez apenas indiferente.

E um sutil sorriso surgiu no canto de seus belos lábios.

Andei em sua direção sem rodeios e me posicionei ao seu lado na sacada. Ela voltou a observar as pessoas e eu iniciei o cortejo:

- É de partir o coração ver uma dama tão elegante com uma expressão tão entediada.

Ela soltou uma pequena risada sem humor.

- É uma pena os convidados do marquês não terem coragem de tirar uma mulher de verdade para dançar.

- Não insulte os convidados do marquês dessa forma, vários deles são corajosos e estão dançando com algumas mulheres de verdade. Mas, no seu caso, só a coragem não basta. Você é uma dama que também exige ousadia para se aproximar.

Ela sorriu satisfeita.

- Conde Victor Silverealm, ao dispor.

- Lady Amélia Roseheart, é um prazer.

- Com todo respeito, milady é uma dama muito notável. Não estava aqui ano passado, não é?

- De fato, não estava. Sou prima do Barão Augustus, estou em sua residência há poucos meses. Eu viria com ele, mas uma febre o acometeu e, infelizmente, tive de vir representar nossa família sozinha.

- Com certeza está muito bem representada. Sua família domina o comércio de tecidos do reino, não é de se admirar que milady traja o mais belo vestido da noite. Lembrarei de encomendar um traje de gala novo na próxima semana.

- Então, garantirei que fique impecável, milorde. Um cavalheiro que salva uma dama do tédio merece respeito e atenção na confecção de um traje.

- Fico lisonjeado com a sua cortesia. E o que a senhorita está achando da cidade?

- Melhor do que a capital. Menos sujeira, menos barulho, menos pedintes.

- Realmente não há vantagem nenhuma em morar na capital, aquela acumuladora de miséria. - O desprezo inicial havia sumido e ela parecia se permitir desfrutar da companhia. Não faltava muito. - Milady aprecia alguma arte?

- Quem não aprecia? Música e pintura são as minhas favoritas. A propósito, esse grupo, os Trovadores Etérios, honra a fama que tem. Pena que os dançarinos não façam jus à música.

Tive de rir do seu sarcasmo.

- Eles são realmente incríveis. Começaram tocando em tavernas e praças, até que foram presos por um capitão interessado em extorqui-los. Felizmente, o povo se revoltou, pois eles faziam a alegria das festas de rua, e o conde da região não só mandou soltá-los, como também se interessou em ouvi-los. Desde então, só se apresentam em cortes.

- Fico feliz que eles tenham tido tal sorte. Vou convencer meu primo a contratá-los para uma festa nossa.

- Não quero insultá-la, mas acredito que o valor que eles cobram esteja além do poder de um barão.

- Tudo bem, promovo-o a conde antes de contratá-los.

- Pelo visto, não sou o único que possuo ousadia nesta conversa.

- Do que serviria a vida sem ambição?

- De fato, de nada serviria.

Confesso que a conversa estava mais interessante do que eu imaginara. Paramos de falar um instante enquanto observávamos o baile. Eu poderia prosseguir a conversa, contudo estava ansioso pela minha refeição. Ansioso pela minha vítima.

- Milady, perdoe minha ousadia, mas não vejo motivo em permanecer nesse salão, se ambos concordamos que isso tudo não passa de um tédio.

Um suave sorriso.

- Sua ousadia é muito bem vinda, milorde.

E então, lady Amélia pôs-se a andar pelas bordas do salão, sem chamar a atenção de mais ninguém além daqueles que já haviam reparado na nossa conversa, direto a um corredor que circulava a lateral do castelo, banhado pela luz lunar. Sem olhar para trás, ela seguiu até uma curva que garantiria que ninguém nos visse do salão e encostou-se em uma pilastra. Seus lábios pareciam me instigar a dominá-los. Seu olhar parecia me desafiar a tocá-la.

Mas seu pescoço era a peça mais encantadora. Sua pele alva e impecável chamava minhas presas com urgência.

Ela parecia achar a situação divertida. Talvez já tivesse enfeitiçado - ou escravizado - outros homens dessa forma. Provavelmente uma devoradora, manipuladora. Que fosse! Naquela noite, ela era o meu banquete.

Já quase tomado pelo instinto, aproximei-me, encaixando nossos corpos, cobiçando seu pescoço e ela interrompeu meu trajeto puxando meu queixo delicadamente para junto de seu rosto.

- Que indelicado, Victor, você sabe muito bem que a conquista começa pelos lábios.

Não posso dizer que fiquei frustrado, pois aqueles lábios mereciam atenção. Ela me olhou com uma mistura de ansiedade e desejo e fechou os olhos, aguardando.

Toquei nossos lábios, beijei sua boca e senti minha essência sendo sugada.

Um vácuo surgiu entre nós. Nossos olhos se arregalaram em susto e tivemos que lutar para separar nossos corpos. Eu pensei que iria me alimentar da vida de uma dama para preencher o meu vazio, porém foi a dama que tentou se alimentar de mim e, para sua surpresa, em vez de absorver vida, absorveu a morte.

Desvencilhamo-nos, eu exibi minhas presas sedentas por sangue em ameaça e ela permitiu que seus olhos ardessem em fogo, revelou um par de asas de morcego e liberou sua aura profana.

- Morto insolente! Como ousa tocar numa dama do Abismo?! - Ela proferiu.

Cuspi no chão.

- Não acredito que eu quase me alimentei de uma meretriz abissal! Este é o meu território! Este povo é o meu rebanho! Aqui não é lugar para uma cadela se alimentar!

- Não tolerarei que um sanguessuga patético me insulte! Este reino acabou de ganhar uma nova dona e ninguém ficará no meu caminho!

- Seus tempos de luxo no Abismo lhe subiram a cabeça! Este reino é meu!

Ela bateu suas asas e saiu do meu alcance antes que eu pudesse atacá-la.

- Conde Victor Silverealm, sinta-se honrado, pois sua existência infeliz acabará pelas mãos de uma verdadeira lady - ela declarou com arrogância, exibindo um maravilhoso sorriso de predadora e sumiu na noite.

Eu não havia lutado tanto para me estabelecer naquela nobreza patética e garantir o meu rebanho para uma meretriz invadir o meu território e ameaçar a minha soberania.

Uma inimiga havia surgido. A primeira notável em séculos.

Eu faria a vadia desejar nunca ter saído do Abismo.

4 comentários:

  1. Respostas
    1. Muito obrigado - apesar de eu ficar sinceramente curioso para saber o que exatamente te fez suspirar.

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  2. Adorei.
    Como sempre, um conto de muito bom gosto.
    Parabéns, Bê.

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